sexta-feira, 18 de junho de 2010

Bagunça.

São objetos arremessados por uma janela aberta de uma casa de dois andares. Calças jeans, camisas de botão, sapatos e até uma bola de futebol que ainda quicava rumo à sargeta. Apenas um sujeito parado, olhando estático, sob a janela. Parece que é ele o alvo dessa revolta que resultou numa bagunça de pertences em plena via pública. Na janela, uma mulher prepara-se para atirar com toda a força as coletâneas de cd's dele. A face dela, abrindo e fechando a boca e contraindo seus músculos de forma que movimenta a sobrancelha, revelando rugas por todo o rosto. É uma mulher irada, nos seus trinta, ou trinta e quatro anos.
Os curiosos, em suas janelas de apartamentos num prédio do outro lado da rua, notam e comentam a calma daquele cara parado na beira da rua olhando com estranha indiferença a mulher, apesar de todos os gritos histéricos e bestiais que xingavam-no sem parar.
Agora já estão no asfalto os pedaços soltos das capas dos discos de jazz e alguns dos Beatles. Não se vê coisas assim todos os dias, em plena madrugada. Um sujeito barbudo e de cabelos desgrenhados que se confundem com a própria barba está chegando perto, usando de como manto uma coberta azul listrada em branco com manchas de sujeira marrons. Tinha se levantado de algum canto escuro que escolheu para então passar a noite, caso não houvesse acontecido todo esse vexame que atraía cada vez mais espectadores. É um sujeito de passos descontraídos, quase dançantes, graciosos. Os olhos negros, inspecionam os objetos do chão. Pegou um disco e chegou próximo do homem plantado sob a janela.
Abriu a boca e falou sem hesitar:
- Cara, tu estás ferrado. Não tem conserto pra isso - disse o mendigo, olhando a face arranhada do disco que juntou.
- Parece que não tem mesmo. Olha só ela, me odeia. O estranho é que não me importo, não me sinto nem bem nem mal.
- Não, não. Ah, sim. Ela não sabe o que faz, és um sujeito tão boa-pinta, não se estraga um relacionamento só por que se arranja uma outra - aponta com seu dedo indicador para a mulher - olha só pra ela, tá toda estragada, o braço treme todas as gorduras só de jogar essas coisinhas, fizestes o certo.
O homem que estava apático, fez uma cara de indignação e olhou para o mendigo. Movimentou os lábios sem sair algum som e então disse:
- O quê!? Quem te disse que eu arranjei outra?
- Minha incrível sensibilidade para esses assuntos, sou um expert - disse, observando mais alguns itens no chão.
- És um bêbado abusado, isso sim. E eu não arranjei outra mulher.
- Ora, ora, que injúria! Vou ficar com esta bermuda como uma forma de compensar sua afronta. E pra sua informação não estou bêbado, nunca mais tive tanto dinheiro para isso...
- Ok, cara, vai embora.
- Que ingratidão, tento te ajudar e sou tratado com essa estupidez. Ainda estou olhando umas coisas que podem ser úteis, aqui...
- Não é questão de certo ou errado. Essa mulher foi a pessoa em quem eu depositei mais confiança, agora ela está louca só por que fui honesto demais.
- Nossa cara, o que você disse de honesto para ela? - o mendigo fez um olhar de interesse - que você gostaria de transar com uma cabra?
- Nossa, você é doentil!
- Experimenta passar alguns anos na rua e não se espantará mais comigo.
- Como viver com a alguém que você não conhece? Você percebe que após dois anos vivendo com uma habitual desconhecida, aquilo que não tinha significado continuou assim, e as expectativa de que se torne algo, se perde, vira rotina, mecânico. Sim, disse isso para ela.
- E pelo visto ela discordava de você.
- Mas estou de consciência limpa.
- Ao menos isso. E o que vais fazer, agora?
- Não sei ainda. Acho que vou esperá-la terminar de esbravejar.
A mulher terminou sua performance de irritada batendo com força a janela por onde arremessou tudo que conseguiu identificar como do sujeito amigado do mendigo. Passado algum tempo, o homem continuou sua conversa com o pedinte peludo, mas agora estavam rumando em sentidos contrários, todos procurando fazer aquilo que lhes dão equilíbrio.

2 comentários:

  1. "Que gostaria de transar com uma cabra?" HAHAH.

    Finalmente tive disposição de verdade pra ler tuas coisas direito. Tu tás escrevendo muito bem, doido. Sério, as narrativas tão bem fluídas e a tua descrição é muito boa. Acho que se conseguir fazer disso um hábito, tu vai começar a escrever contos maiores. Sei que é difícil e tals, mas não custa tentar, né.
    Saudade.

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  2. A gente pode se surpreender às vezes. :)

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