sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Sobre o que é material.

"Pneus deslizando sobre o asfalto", identificou o som que acabara de lhe acordar. Manteve os olhos fechados. Detesta a forma como as pessoas são expansivas e conseguem estragar o seu bom humor. "Que rebentem os pneus e façam capotar o carro desse boçal imbecil que provavelmente dirige alcoolizado.", imaginou e sorriu, sem rancor.
Abrira os olhos repentinamente. Viu o teto branco e seu ridículo ventilador. Deitado, tentando adaptar os olhos à iluminação e foco necessários, pôs as duas mãos em seus cabelos e agitava-as repetidas vezes. Levantou suas costas com esforço e apoiou-se nos cotovelos. Viu a única janela, que havia deixado aberta para entrar o ar renovado. Detestou por um instante a janela por lembrar que o som vindo do lado de fora se propagara por ali. Os cotovelos doeram-lhe. Sentou-se. O peso dos braços doía em seus ombros. Está tenso, dorme mal já faz algum tempo. Anda preocupado com a ideia de arranjar um emprego, tem se mantido com alguns trocados que seus pais lhe dão de bom grado. Detesta isso, culpa seus pais por ser preguiçoso. "Tenho idade e saúde necessárias para trabalhar. Mas não, aqueles porcos querem me bancar até os trinta anos de idade." Não os culpava inteiramente, foram educados para educar desta forma superprotetora.
Enxergou com dificuldade a hora marcada no relógio digital sobre a cômoda. Quatro e trinta e dois da manhã. Levantou, não está zonzo, dirige-se à janela, enfia a cabeça pra fora. Percebe a escuridão de fora, olha para a pista, iluminada por vários círculos de luz, resultantes da distribuição dos postes a cada cinquenta metros, como seu pai um dia explicou-lhe na infância. Buscou por rastros do carro, na rua. Não achou. Pensou, "O filho da puta pode ter me acordado, mas ele tem um emprego e dinheiro para um carro."
Olhou seu apartamento, um quarto-sala simples. Ele acha mais que suficiente, sabe que se vivesse em um carro estaria igualmente satisfeito. "E ainda deixaria de pagar este aluguel", pensou com prazer na ideia. Dirigiu-se ao banheiro. Dentro, acendeu a luz. Tem olheiras escuras. Percebeu seus cabelo, sobrancelhas e barba, gostou de sua aparência, sorriu com vaidade para si. Olhou-se com narcisismo por um curto tempo, até que um pensamento autocrítico desconsertou-o: "Mas que belo hipócrita sou, coberto de produtos, meu cabelo, minhas roupas, este banheiro! Todos produtos, o dinheiro compra tudo isso". Duvida de sua liberdade, pensa, "sou capaz de largar isso se tiver vontade?".
Olha seu reflexo: um sujeito parado com um imenso mosaico de azulejos ao fundo. "Sou este?", pensou. Tocou a superfície de sua bochecha, não se sente real, pensou, " sou este debaixo dessa merda toda?". Raiva. Pode se livrar daquilo quando sentir vontade? A pergunta sufocava-o. Viu o barbeador no balcão onde fica a pia, posicionou aquela lâmina perto de sua têmpora esquerda e passou-a ali, raspando a lateral do couro cabeludo. Haviam mechas remanescentes da raspagem malfeita. Com um olhar avaliativo percebeu que sangrava por um pequeno corte, um fino rastro de sangue escorria até seu queixo. "Ele sangra", disse. Uma espécie de fraternidade por si mesmo, dominou-0. Umedeceu sua mão e passou-a em sua face. Olhou a palma de sua mão que estava coberta com aquele sangue aguado com alguns pelos por cima. Não sangrava mais. Viu sua aparência tosca e gargalhou sem pensar. Não sentia vontade de continuar o serviço, não tinha mais a mesma determinação desesperada de três minutos atrás. "Amanhã decido o que fazer com o resto do meu cabelo", concluiu o pensamento, tranquilo.
Apagou a luz do banheiro. O quarto está iluminado apenas pela luz que entra pela janela da rua. Apenas aquela atmosfera azul e silenciosa, naquele quarto. Deitou-se de costas para a janela. Olhava sua silhueta na parede, quando fechou os olhos, as silhuetas formaram imagens. Divertia-se, ainda, com sua figura repulsiva. Teve sono logo, está sóbrio e relaxado, sente-se senhor de si.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Sobre a necessidade.

Felipe caminha fechado, com as duas mãos nos bolsos dianteiros de sua jaqueta negra. Ele gosta daquela jaqueta, sempre lamenta não poder usá-la durante o dia, vive numa cidade quente. Passos curtos e rápidos pela calçada. É uma avenida larga, arborizada. A calçada é estreita quando comparada à área destinada para os carros. Atravessava pelo olhar despretensioso de mendigos, ali, ainda acordados, olhando o nada. Felipe não encarava-os. Não que tivesse medo daqueles homens com aspecto de inúteis. Era assombrado pela idéia de encontrar a si nos olhos deles, como já ocorrera antes. Felipe ficaria introspectivo a imaginar o que levaria ele próprio a chegar àquele estado, e não lhe parecia algo tão difícil. "Não me acostumo a isso, mas hoje não encararei estas faces. Tenho apenas alguns trocados em meu jeans, que poderei fazer hoje?", pensou. Seguiu por uma transversal que cortava a avenida em que estava. A rua estava deserta. Felipe estava só, e era assim que ele se sentia.
Andou mais duas quadras. Chegara no bar&café onde tinha combinado. Havia apenas um carro prata simples estacionado em frente. Pensou, "deve ser o dela". Felipe havia tido um dia difícil. Para ele existiam escalas para avaliação dos dias, nos extremos estariam "trágico" e "medíocre". Elaborar adjetivos e hierarquizá-los nessa escala lhe distrai. "Difícil" estava mais próximo de "medíocre" que de "trágico", portanto estava de bom humor, digamos assim. Sentiu uma vontade súbita de ver aquela mulher, "Isabela deve estar sentada na mesa perto da janela", sussurrou. Sentia prazer ao dizer aquele nome, repetiu sorrindo para si, "Isabela". Ainda em frente ao bar&café, ansioso, tentou ver se Isabela estava na janela. Eram três da manhã de uma terça-feira, as persianas estavam abaixadas. A tensão em seu corpo aumentou, sentia o coração pulsar. Aproximou-se da porta, um grande segurança negro a abriu. Desejou boa noite e entrou no recinto, tirou as mãos dos bolsos da jaqueta e esfregou uma na outra. "Não estão suadas", tranquilizou-se. Isabela estava onde havia imaginado. Estava diferente, pensou, "talvez seu cabelo, ou então a maquilagem". Felipe, definitivamente, sabia que era Isabela. A tensão do seu corpo se esvaía. Teve, novamente, a certeza de que a presença daquela mulher poderia transformar qualquer dia ruim em medíocre, sorriu ao perceber isso. Se conhecem há quase quatro anos, cursavam a mesma faculdade de cinema. Falavam-se diariamente. Hoje, não têm mais contato cotidiano. Encontram-se de forma irregular durante as semanas para conversar. As madrugadas acabam sendo o momento mais oportuno para tais encontros, ambos são pessoas lotadas de afazeres durante o dia, e como estão numa cidade limitada de bons locais para sair, acabaram por frequentar o mesmo café há longo prazo.
Felipe aproximou-se:
- Graças a deus você chegou, estava ficando preocupada.- disse Isabela com uma voz levemente angustiada.
- Pare com isso, sabes que sou ateu.- Felipe sorriu para ela com ternura e sentou-se. Continuou - Desculpe o atraso, eu estava afoito, precisei caminhar um pouco. Foi um dia difícil.
- Você e suas classificações para os dias, nunca vi diferença em você e seus comportamentos, independente dos dias que você leva, e olha que conheço você há um bom tempo!
Felipe abriu um sorriso assentindo. Era verdade, Isabela jamais havia visto os efeitos de um dia ruim sobre sua personalidade. Se esforçou, mas não lembrou de uma vez sequer em que tenha se descontrolado diante dela. Ela lhe dá essa sobriedade. É seguro, confia nela. Detesta pensar nisso como uma amizade, é pouco. Transcendental seria o termo mais apropriado para definir o vínculo deles. Ele sente-se em paz.

- Havia alguns mendigos na Avenida Rio Branco. Me incomoda a falta de liberdade deles, porquê ficam ali sentados esperando a morte, ou algum trocado? - Perguntou indignado, Felipe.
- Talvez esperem uma oportunidade...- retrucou Isabela.
- Oportunidade para o que, tornar-se igual aos que eles têm raiva?- disse com agressividade. Controlou sua revolta e continuou - Entendo o que queres dizer, mas eles se conformam. Estão livres. Alguns nem pensam em sua dignidade, dormem bêbados sobre o próprio vômito, pelas calçadas. O que lhes falta para tomar uma iniciativa e tentar mudar isso?- Suspirou, desabafando.
- É a natureza humana. Somos todos uns grandes preguiçosos. Por alguns motivos, que desconheço, uns nascem com mais coragem que os outros. Acredito muito que se eles tivessem fé de que outra forma de vida diferente, e melhor, é possível, seria de grande estímulo.- disse, com a sobriedade e simplicidade que Felipe admirava.

Felipe pensou em si, "não fosse Isabela, não sentiria prazer neste instante. Conversaria com Paulo, ou Teodoro, talvez, mas não iria ser a mesma coisa. Gosto da sua presença, me sinto necessário, vejo que sente prazer em me ouvir e eu de falar para ela". Segurou a mão de Isabela e disse subitamente, "Eu gosto de você". Isabela inclinou-se para frente, sorriu com afeto para Felipe. Queria ser beijada. Beijou-a. Olharam-se cordialmente, pediram um café. Ajeitou-se ao lado de Felipe. Olhando-a encostada no seu ombro, sua mente ficou tapada. Queria apenas estar com ela.

São apenas dois animais. Têm vidas diferentes. Desejam-se diferentemente. Talvez completem-se, suas necessidades mudam, os seres humanos mudam. As realidades são diferentes. Felipe é um ser vivo que veste sua jaqueta preta e deseja, nesse momento, Isabela. Depois desejará viver num lugar mais frio, com menos pessoas morrendo ao seu redor. Talvez volte a querer Isabela, ou sabe-se lá o quê.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Conversa de quarta-feira.

Acho bom que não me pergunte o por quê da minha insistência em falar contigo. Sabe, andei pensando em como as coisas que me são tangíveis acabam se desfazendo entre meus meus dedos quando as toco. Não estou fazendo drama algum, e é óbvio que estou me referindo ao sentido figurado, oras.
Comecei a pensar nisso, hoje, no banheiro. Sim, eu havia acabado de tomar um banho quente, saía do box e me defrontei com o espelho embaçado do armário, onde ficam as escovas de dente. Senti-me angustiado com minha solidão. Decidi ver minha cara. Pensei, "a solidão é quando sinto necessidade da presença de alguém", fiz uma pausa. Continuei,"tenho quase 21 anos e o que aconteceu às pessoas que conheci?".
Estendi o braço direito de forma delicada para limpar a superfície inútil do espelho. Esbarrei sem querer na armação da estrutura oval que contorna o espelho. Ela se soltou e caía. Apático, eu disse, "merda". Terminei de limpar umidade que se acumulara no espelho. Vi meus olhos. Enquanto olhava aquele olhar indiferente, me pus a pensar, "será que eu sou o desastrado que destrói tudo o que toca, ou serão as coisas frágeis demais?". Fechei os olhos por alguns segundos e virei a face, não gostaria de ter que me olhar de novo. Sem olhar minha cara, pus a armação novamente em seu lugar. "Isso é fácil de consertar." Pensei, livre dos outros pensamentos, e sorri.
Sei que estás me ouvindo, por mais que estejas calado e olhando pra essa revista. Bem sei que não gostas de falar sobre essas coisas, também. Estou falando dos meus pensamentos, não do que faço quando estou no banheiro. Eu sei que ocorreram no banheiro, mas poderiam ter acontecido em qualquer outro lugar. Maldita hora em que citei o banheiro, conseguistes o pretexto que querias para fugir de conversar comigo. Também pouco me importa se queres falar a respeito, sei que você me ouviu. E se eu sinto vontade de falar isso é só para não me sentir tão solitário assim.
Enquanto folheias essa revista que, muito provavelmente, traz as novas modas do momento; penso em como, talvez, meus vínculos familiares, amorosos e afetivos são frágeis. Pelo menos estou apredendo a lidar com isso, olhe só para nós dois.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Começo.

Numa busca de sobriedade e libertação das ideias eu começo minha manifestação de vida aqui neste blog.
Você pode não acreditar, mas eu preciso fazer isso para me sentir vivo. E se você não acredita, é porque, provavelmente, ainda tem que aprender algo sobre as necessidades das pessoas e os comportamentos que elas assumem na expectativa de não encarnar a vida que elas são subordinadas a viver.
Pois bem, aceito como realidade tudo que existe e pode ser captado via nossos sentidos. E nós, somos quem têm esses sentidos e tenta dar um entendimento lógico a tudo isso. Vocês, são o que eu acho que são. A puta pode ser uma mera puta para mim, para outro, pode ser uma mãe.
Não entendo ao certo quem eu sou. Não consigo ter certezas ao olhar para mim. Gostaria muito de escolher uma profissão, ou outra atividade qualquer e definir-me e etiquetar o que eu faço. Assim como tenho a impressão que os outros fazem.
Simplesmente não dá. Me sinto limitado e rotulado. Quando tenho certezas, são todas negativas: eu não quero isso, nem aquilo. Mas ainda essas estão tornando-se escassas e temporárias. Já fiquei muito tempo incomodado com a falta de certezas. Na verdade o incômodo foi só uma falta de auto-afirmação-egocêntrica que a juventude nos obriga a buscar, demorei demais para entender que eu não era o único a estranhar aquelas pessoas tão, digamos, bem definidas.
Ok, talvez tudo isso não me tenha ajudado a arranjar um objetivo que sirva de base pra modelar minha vida. Porém tenho compreendido o quanto a liberdade pode ajudar na construção de ideais e princípios, isso tudo sem maniqueísmos.
Vivo nessa realidade surreal, onde as pessoas parecem reais até o momento que me aproximo delas. Eis a minha apresentação a vocês que são, ou não são, enfim.