quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Sobre a necessidade.

Felipe caminha fechado, com as duas mãos nos bolsos dianteiros de sua jaqueta negra. Ele gosta daquela jaqueta, sempre lamenta não poder usá-la durante o dia, vive numa cidade quente. Passos curtos e rápidos pela calçada. É uma avenida larga, arborizada. A calçada é estreita quando comparada à área destinada para os carros. Atravessava pelo olhar despretensioso de mendigos, ali, ainda acordados, olhando o nada. Felipe não encarava-os. Não que tivesse medo daqueles homens com aspecto de inúteis. Era assombrado pela idéia de encontrar a si nos olhos deles, como já ocorrera antes. Felipe ficaria introspectivo a imaginar o que levaria ele próprio a chegar àquele estado, e não lhe parecia algo tão difícil. "Não me acostumo a isso, mas hoje não encararei estas faces. Tenho apenas alguns trocados em meu jeans, que poderei fazer hoje?", pensou. Seguiu por uma transversal que cortava a avenida em que estava. A rua estava deserta. Felipe estava só, e era assim que ele se sentia.
Andou mais duas quadras. Chegara no bar&café onde tinha combinado. Havia apenas um carro prata simples estacionado em frente. Pensou, "deve ser o dela". Felipe havia tido um dia difícil. Para ele existiam escalas para avaliação dos dias, nos extremos estariam "trágico" e "medíocre". Elaborar adjetivos e hierarquizá-los nessa escala lhe distrai. "Difícil" estava mais próximo de "medíocre" que de "trágico", portanto estava de bom humor, digamos assim. Sentiu uma vontade súbita de ver aquela mulher, "Isabela deve estar sentada na mesa perto da janela", sussurrou. Sentia prazer ao dizer aquele nome, repetiu sorrindo para si, "Isabela". Ainda em frente ao bar&café, ansioso, tentou ver se Isabela estava na janela. Eram três da manhã de uma terça-feira, as persianas estavam abaixadas. A tensão em seu corpo aumentou, sentia o coração pulsar. Aproximou-se da porta, um grande segurança negro a abriu. Desejou boa noite e entrou no recinto, tirou as mãos dos bolsos da jaqueta e esfregou uma na outra. "Não estão suadas", tranquilizou-se. Isabela estava onde havia imaginado. Estava diferente, pensou, "talvez seu cabelo, ou então a maquilagem". Felipe, definitivamente, sabia que era Isabela. A tensão do seu corpo se esvaía. Teve, novamente, a certeza de que a presença daquela mulher poderia transformar qualquer dia ruim em medíocre, sorriu ao perceber isso. Se conhecem há quase quatro anos, cursavam a mesma faculdade de cinema. Falavam-se diariamente. Hoje, não têm mais contato cotidiano. Encontram-se de forma irregular durante as semanas para conversar. As madrugadas acabam sendo o momento mais oportuno para tais encontros, ambos são pessoas lotadas de afazeres durante o dia, e como estão numa cidade limitada de bons locais para sair, acabaram por frequentar o mesmo café há longo prazo.
Felipe aproximou-se:
- Graças a deus você chegou, estava ficando preocupada.- disse Isabela com uma voz levemente angustiada.
- Pare com isso, sabes que sou ateu.- Felipe sorriu para ela com ternura e sentou-se. Continuou - Desculpe o atraso, eu estava afoito, precisei caminhar um pouco. Foi um dia difícil.
- Você e suas classificações para os dias, nunca vi diferença em você e seus comportamentos, independente dos dias que você leva, e olha que conheço você há um bom tempo!
Felipe abriu um sorriso assentindo. Era verdade, Isabela jamais havia visto os efeitos de um dia ruim sobre sua personalidade. Se esforçou, mas não lembrou de uma vez sequer em que tenha se descontrolado diante dela. Ela lhe dá essa sobriedade. É seguro, confia nela. Detesta pensar nisso como uma amizade, é pouco. Transcendental seria o termo mais apropriado para definir o vínculo deles. Ele sente-se em paz.

- Havia alguns mendigos na Avenida Rio Branco. Me incomoda a falta de liberdade deles, porquê ficam ali sentados esperando a morte, ou algum trocado? - Perguntou indignado, Felipe.
- Talvez esperem uma oportunidade...- retrucou Isabela.
- Oportunidade para o que, tornar-se igual aos que eles têm raiva?- disse com agressividade. Controlou sua revolta e continuou - Entendo o que queres dizer, mas eles se conformam. Estão livres. Alguns nem pensam em sua dignidade, dormem bêbados sobre o próprio vômito, pelas calçadas. O que lhes falta para tomar uma iniciativa e tentar mudar isso?- Suspirou, desabafando.
- É a natureza humana. Somos todos uns grandes preguiçosos. Por alguns motivos, que desconheço, uns nascem com mais coragem que os outros. Acredito muito que se eles tivessem fé de que outra forma de vida diferente, e melhor, é possível, seria de grande estímulo.- disse, com a sobriedade e simplicidade que Felipe admirava.

Felipe pensou em si, "não fosse Isabela, não sentiria prazer neste instante. Conversaria com Paulo, ou Teodoro, talvez, mas não iria ser a mesma coisa. Gosto da sua presença, me sinto necessário, vejo que sente prazer em me ouvir e eu de falar para ela". Segurou a mão de Isabela e disse subitamente, "Eu gosto de você". Isabela inclinou-se para frente, sorriu com afeto para Felipe. Queria ser beijada. Beijou-a. Olharam-se cordialmente, pediram um café. Ajeitou-se ao lado de Felipe. Olhando-a encostada no seu ombro, sua mente ficou tapada. Queria apenas estar com ela.

São apenas dois animais. Têm vidas diferentes. Desejam-se diferentemente. Talvez completem-se, suas necessidades mudam, os seres humanos mudam. As realidades são diferentes. Felipe é um ser vivo que veste sua jaqueta preta e deseja, nesse momento, Isabela. Depois desejará viver num lugar mais frio, com menos pessoas morrendo ao seu redor. Talvez volte a querer Isabela, ou sabe-se lá o quê.

2 comentários:

  1. A sua caminhada pelo cotidiano lhe faz buscar explicações para as diversas realidades ( sociais e humanas!) querendo entender as diversidades de situações e atitudes diante da vida! Na mesma estrada encontramos pessoas com quem compartilhamos nossas indagações e, nos sentimos felizes quando juntos passamos a olhar a vida de forma mais suave; apesar da mesma ser carregada de contradições!!
    Buscamos respostas, mas nunca esqueçamos que o mundo também espera de nós a nossa parte! ( lembrou a música do Lenine, rsrs)

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  2. essa "rua" é familiar! definitivamente, um bom texto.

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